As atenções do país se voltam para a CPI da Pandemia, que apura a responsabilidade de autoridades federais sobre o impacto da Covid-19 no Brasil. Nesses debates, a Advocacia-Geral da União (AGU) tem sido sujeito injustificadamente oculto. A atuação do governo na pandemia não foi construída apenas com teses infundadas na ciência e na saúde pública. Tem também dimensão jurídica – na esfera da AGU, e sob responsabilidade de quem a chefiou.
Ideias como “imunidade de rebanho” e “tratamento precoce” tiveram papel central nas posições do governo e de seus apoiadores na comunidade médica, nas redes sociais e na política. Mapeados na CPI, depoimento após depoimento, esses clichês aparecem em variadas formas, da fantasia irresponsável à mentira deliberada, resistindo ao avanço dos fatos, da ciência e da tragédia.
Mas o caminho do governo na pandemia foi também sustentado com ideias jurídicas. Uma delas é a de que, mesmo com a edição de regras específicas para a pandemia, não haveria no país base legal para qualquer medida restritiva do funcionamento do comércio ou de aglomerações em locais públicos – exceto restrições a transporte e o isolamento de pessoas contaminadas ou suspeitas de contaminação. É o que afirmaram, em recente petição no STF, o atual advogado-geral da União, André Mendonça, e o presidente Bolsonaro.
A CPI deveria ouvir Mendonça a respeito, bem como seu antecessor, José Levi do Amaral Júnior. Segundo o JOTA, por trás da saída de Levi da AGU podem estar divergências entre ele e o presidente quanto a uma ação anterior, assinada apenas por Bolsonaro e rejeitada por Marco Aurélio, justamente contra medidas restritivas nos estados.
Ouvir Mendonça e Levi sobre esse ponto ajudaria a enfrentar outro perigoso (e falso) clichê do discurso do governo na pandemia: a ideia de que o STF teria “proibido” o governo federal de adotar medidas de combate à transmissão do vírus. Embora sobreviva em algumas vozes pró-governo, trata-se de mentira tão escancarada que provocou nota oficial de esclarecimento por parte do Supremo. Questionados quanto a essa recorrente mentira, repetida no campo governista há mais de um ano, depoentes na CPI desconversam. Não conseguem explicar o que exatamente o governo teria feito se o Supremo não tivesse (como alegam) “amarrado suas mãos”. Mas, na ação acima mencionada, o atual AGU já respondeu a essa pergunta: sem a decisão judicial de abril de 2020, o governo não teria feito nada diferente. O obstáculo não é a decisão do Supremo, mas a própria visão do governo sobre o que pode e deve ser feito.
O chefe da AGU tem status de ministro, tanto quanto o ministro da Saúde. Lidera o órgão máximo de consultoria jurídica do governo federal. O general Pazuello e outros ex-ministros da Saúde precisaram responder o que pensam do discurso do governo sobre ciência e saúde pública. Concordam ou não? Se não concordam, qual foi o seu papel diante dessas ideias? Os AGUs precisam responder a perguntas equivalentes. Qual foi, afinal, o seu papel na validação e propagação no discurso do governo na pandemia? Se não concordam, o que fizeram para combater esses erros?
O fato de a AGU ser um órgão de “advocacia” não pode reduzir sua responsabilidade a nada, nem legitimar tudo. Sim, a AGU deve defender o governo em juízo. Sim, isso pode ocorrer ainda que seus integrantes não concordem, no mérito, com as políticas adotadas. Mas há limites. O AGU representa o Executivo em juízo, mas é também indispensável conselheiro interno quanto à eventual legalidade do que o governo pretende fazer. Há consultores da AGU espalhados entre os ministérios e, entre as tarefas expressas do advogado-geral da União, está “assistir o Presidente da República no controle interno da legalidade dos atos da Administração”.
Ou “controle interno da legalidade” pressupõe um parâmetro externo aos interesses e caprichos do Presidente, ou vale tudo. E, se vale tudo, qual o sentido de se ouvir a AGU?
Esse parâmetro precisa permitir, ao menos em tese, que o advogado-geral da União diga “não” a certas ideias do presidente. Se considera que o caminho adotado pelo Executivo ultrapassa a legalidade, sempre pode pedir exoneração; ninguém é obrigado a permanecer neste cargo, assim como o presidente não é obrigado a manter nele alguém de quem discorde. Se o AGU permaneceu no cargo, é porque não considerou haver ilegalidade em jogo – ou talvez porque tenha se omitido diante de ilegalidades.
Segundo o Valor Econômico, foi justamente no exercício deste controle interno de legalidade que um integrante da AGU deu parecer contrário à aceleração do estranho processo de compra da Covaxin. O chefe da AGU à época, Levi, tomou conhecimento do episódio? Ouvir Levi e o consultor que assinou o parecer seria fundamental para compreendermos o papel do órgão na pandemia ao longo do tempo – assim como ocorreu com o Ministério da Saúde. Quando e como a AGU tentou impor limites, ainda que sem sucesso, e quando endossou a legalidade dos atos do governo?
Os exatos contornos e limites das duas funções da AGU e do seu chefe – consultoria jurídica interna e representação jurídica externa – podem ser difíceis de traçar. Sem cair no “vale tudo”, ainda há espaço para concepções possivelmente distintas. Mas, se há dúvida, é mais uma razão para ouvir Mendonça e Levi. Se sua visão do papel e dos limites da instituição é relevante para compreender seu papel na pandemia, devem explicar essa visão aos senadores e ao país.
No caso de André Mendonça, há razão adicional para chamá-lo à CPI. É o atual favorito à indicação para o Supremo, na vaga de Marco Aurélio. Como ministro, Mendonça seria peça-chave em futuros processos sobre a responsabilidade de agentes do governo Bolsonaro.
Seria no mínimo estranho que Mendonça pudesse deixar o governo que integrou e cuja responsabilidade está sendo investigada, para ingressar no tribunal que decidirá sobre essa mesma responsabilidade no futuro – quase sem tocar o chão, sem que essa complicada transição fosse discutida. Como se não tivesse nada a ver com a história. Como se teses jurídicas não tivessem qualquer papel na construção da tragédia que a CPI investiga.
Haverá uma sabatina caso a indicação ocorra, mas o papel do atual AGU na pandemia é parte do objeto da CPI. Precisa ser analisado agora. A CPI é o espaço para que sua participação no episódio da pandemia seja documentada, mapeada e compreendida. O ingresso no Supremo não pode apagar a vida pregressa. A trajetória de Mendonça junto a Bolsonaro terá tornado possível sua eventual indicação; essa mesma trajetória deve ser também o critério para avaliar sua suspeição ou imparcialidade no futuro. Mendonça não terá sido indicado por Bolsonaro ao STF apesar de sua atuação diante da Covid-19, mas também por causa dela. É preciso deixar claro, desde já, qual sua parcela de responsabilidade no contexto maior da pandemia – especialmente se couber a um futuro ministro Mendonça julgar a responsabilidade do próprio governo que o indicou.
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