Apontamentos sobre o decreto de indulto individual de Daniel Silveira

Francisco Eduardo Carrilho Chaves (Parceiro) – Advogado, consultor legislativo do Senado Federal, ex-auditor do TCU, autor do livro Controle Externo da Gestão Pública: a fiscalização pelo Legislativo e pelos tribunais de contas (Impetus, 2009), e coautor do livro A Nova Lei de Licitações (Almedina, 2021), com especializações pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Ninguém no Supremo Tribunal Federal (STF) ou na assessoria jurídica do Governo é iletrado em Direito. Mas a maioria da população é. A ela direciono este artigo. Viso dar ao grande público, em linguagem o mais popular possível, condições de aferir as nuances da edição do decreto do Presidente Bolsonaro que concedeu indulto a Daniel Silveira. Por essas características, de imediato, pedimos escusas aos puristas do Direito pelo uso de algumas expressões de forma não tecnicamente rigorosa, nas quais utilizaremos aspas para dar destaque à nossa proposital supressão do estado da arte.

Apresento aqui o que acredito deva ser objeto de discussão, sem a pretensão de afirmar o certo e o errado, somente o que deverá ser ponderado para que alguém, com competência constitucional para tanto, decida. Nenhuma lei é absoluta e livre de interpretação, nem mesmo a Constituição. E o último intérprete dela é o STF.

Tanto defensores quanto detratores do decreto que concedeu o indulto presidencial abordam apenas parcialmente as questões controversas a ele relacionadas. É pitoresco assistir especialistas na mídia, a depender da inclinação editorial do veículo de comunicação, subtraírem de seus discursos o que lhes é inconveniente no momento, buscando “puxar a brasa para a sua sardinha”. Seja ao ignorarem um julgado decorrente de inquérito e processo nos quais se confundem na mesma pessoa/instituição as figuras de investigador, acusador e julgador, seja ao esquecerem de que nenhuma norma constitucional pode ser lida isoladamente.

Iniciamos reconhecendo a importância dos precedentes e que a jurisprudência deve ser considerada, mas, via de regra, ela não é vinculante no Brasil e em países que adotam o mesmo sistema jurídico básico (civil law), como: Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. A jurisprudência pode mudar, evoluir, como se diz.Igualmente, não cabe em uma discussão jurídica a simples alegação de que se fulano fez eu posso fazer também. Isso é só para conversas informais em mesas de bar ou em redes sociais.

Entendo que a pedra de toque para descortinar as controvérsias será a harmonização do princípio da impessoalidade com outros mandamentos constitucionais.

A impessoalidade ganhou contornos tupiniquins pitorescos em 1942, uma verdadeira jabuticaba, na ditadura Vargas. O ditador Getúlio editou um decreto-lei para beneficiar Assis Chateaubriand em uma querela familiar. Chateau era seu amigo e homem poderoso na mídia da época. A norma ficou conhecida como “Lei Teresoca”. Assim que Chateau conseguiu o que queria, Vargas revogou o decreto-lei. A história pode ser facilmente encontrada na internet.

Não obstante sua notória importância, o princípio da impessoalidade somente ganhou estatura constitucional com a Carta Cidadã de 1988. Foi ela a primeira a trazer no texto esse princípio, que, grosso modo, estabelece o dever de imparcialidade na defesa do interesse público, impedindo discriminações e privilégios indevidamente dispensados a particulares no exercício das funções estatais. O administrador deve servir a todos, sem preferência ou aversões pessoais ou partidárias, não podendo haver atos ou ações direcionados especialmente para alguém. O princípio é consonante com outro também constitucional: o da isonomia.

Para ser aplicada, toda e qualquer legislação precisa ser constitucional. Isto é, atender às regras (todas) da Carta de 1988. Normas anteriores aderentes à atual Constituição são por esta recepcionadas. Caso a descumpram, não são acolhidas no novo ordenamento. Neste universo estão o como o Código Penal (CP) e o Código de Processo Penal (CPP). Em alguns casos de dúvida, essas normas legais podem ser submetidas ao crivo do STF em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), prevista no § 1º do art. 102 da CF e regulada pela Lei nº 9.882/1999.

A graça está prevista no inciso II do art. 107 do CP, o Decreto-lei nº 2848, de 7/12/1940, cuja instrumentalização está disposta no art. 734 e seguintes do CPP, o Decreto-lei nº 3.689, de 3/10/1941.

Conforme visto, as codificações penais, tanto a material quanto a processual, são anteriores à atual Constituição, que concede ao Presidente da República somente a possibilidade de conceder indulto (art. 84, XII). O comando constitucional não cita a graça. Competências constitucionais são expressas, taxativas, não cabendo falar: “se pode isso também pode aquilo”. Não funciona assim. O que se discute primeiro é, portanto, se a graça ser entendida como um indulto individual, e nesse ponto se iniciará a discussão sobre a impessoalidade. Mas vejamos outras coisas antes.

O direito positivo brasileiro não diferencia objetivamente indulto e graça. A doutrina os separa conceitualmente, assim como a anistia. Pelo CP, todas são causas extintivas da punibilidade. Ainda que haja controvérsias acerca da diferenciação entre extinguir a pena e extinguir a punibilidade, para os fins deste trabalho, manteremos a posição do CP: extingue-se a punibilidade.

Impossibilidade de punir difere de injuridicidade, que é a conduta ser contrária ao Direito. A primeira exclui a possibilidade de o Estado sancionar, mas não “legaliza” uma conduta ilegal. Em outras palavras, não se pode punir, mas o que foi feito não pode ser qualificado como “correto”. Extinguir a punibilidade não é absolver. Por isso, também é importante o momento da concessão do indulto para a aferição das suas consequências, especialmente se a matéria transitou em julgado ou não.

Também extinguem a punibilidade a morte do agente infrator, a retroatividade da lei mais benéfica e outras situações previstas no art. 107 do CP.

Os doutrinadores diferem o indulto da graça, basicamente, pelo primeiro ser concedido genericamente, para todos os indivíduos que se encontram na mesma situação jurídica. A graça seria uma espécie de indulto individual, dado a uma pessoa.

Na Lei Fundamental, somente o inciso XLIII do art. 5º cita a graça, e o art. 84, XII, restringe-se a indulto como algo que compete somente ao Presidente da República conceder, podendo delegar essa atribuição. É compreensível que se estranhe e reprove para a falta de técnica do constituinte, mas a realidade precisa ser enfrentada. Para isso existe a hermenêutica.

Assim, o cerne da discussão está em avaliar se a CF de 88 recepcionou a graça, entendendo-a como indulto individual, tendo em contraponto a existência do princípio da impessoalidade (art. 37), cuja obediência é obrigatória por todos integrantes e em todos os atos da administração pública, inclusive na produção e na aplicação das normas jurídicas.

O indulto coletivo é pacífico. Nele, se prevê uma situação genérica em que vários indivíduos, não nominalmente identificados, podem ser enquadrados. Estão presentes os atributos de generalidade e abstração da norma jurídica, o que, de plano, afasta a pecha da pessoalidade.

Assim o intérprete se verá na obrigação de sopesar o princípio da impessoalidade em face dos fundamentos constitucionais alegados pelo Presidente da República para editar o Decreto de dia 21 de abril corrente:

  1. a) manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
  2. b) liberdade de expressão como pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
  3. c) inviolabilidade de opinião de membro do Parlamento;
  4. d) manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes; e
  5. e) zelo pelo interesse público.

Esperamos haver contribuído para que a sociedade brasileira tenha uma melhor aproximação da matéria e possa acompanhar as inevitáveis futuras discussões e narrativas envolvendo o decreto presidencial que indultou Daniel Silveira.

Artigo publicado no JOTA: https://www.jota.info/autor/francisco-eduardo-carrilho-chaves

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